Comunhão na Broadway

O uso indiscriminado de certas expressões para se referir à realidade tem a capacidade paradoxal de obscurecê-la. Por exemplo, a expressão “a arte imita a vida” oculta, em sua enganosa simplicidade, o fato de que sempre que uma obra de arte (um romance, um filme, uma canção, uma pintura) destaca algum aspecto da realidade, mais do que “imitar”, torna-o uma peça de imaginação, impregnando a própria realidade com a expressividade da forma criada. Em seus “Philosophical Sketches”, Susanne Langer afirma que arte é a prática de formas perceptivas expressivas do sentimento humano; por “expressão”, ela quer dizer “apresentação de uma ideia por meio de símbolos”. A arte enriquece a vida pela possibilidade de ampliar nosso conhecimento para além das experiências reais; ela dá forma às nossas experiências interiores de modo que podemos contemplá-las e entendê-las. 

Ao individualizar nossos sentimentos, nos auxiliando a percebê-los e a descrevê-los, podemos ser capazes também de perceber os dos outros, com os quais construimos e partilhamos nossas experiências cotidianas. Seremos capazes de contemplar nossa humanidade compartilhada. Nossa história pessoa, em que há uma conexão entre presente e passado, é também a história de nossa comunidade, de nosso meio.

Em um artigo escrito em 1974, o crítico musical Jon Landau descreveu suas impressões ao presenciar, pela primeira vez, um show de Bruce Springsteen:

Na quinta-feira passada, no teatro Harvard Square, vi meu passado de rock-n-roll passar diante dos meus olhos. E eu vi outra coisa: eu vi o futuro do rock-and-roll e seu nome é Bruce Springsteen. E numa noite em que eu precisava me sentir jovem, ele me fez sentir como se estivesse ouvindo música pela primeira vez. (…) São cinco horas agora – escrevo colunas como esta o mais rápido que posso, com medo de me acovardar. Sinto-me velho, mas o disco e minha lembrança do show fizeram-me sentir um pouco mais jovem.” (https://web.archive.org/web/20030202021626/http:/home.theboots.net/theboots/articles/future.html)


Jon Landau produziu diversos álbuns de Bruce Springsteen, e é um dos produtores de “Springsteen on Broadway”, disponível na Netflix. Neste misto de show e depoimento, Springsteen nos mostra o poder “revelador”da arte ao nos relatar um pouco de sua história pessoal e da história que embasa a maioria de suas canções. Temos aí a visão de um grande artista que sabe que, pela arte, somos capazes de nos aproximarmos de nossa experiência compartilhada – um abismo aparentemente tão insondável quanto as estrelas.

Cata-Ventos

No documentário “Running with our eyes closed” (HBO), há um momento em que o cantor e compositor Jason Isbell e sua esposa, a violinista Amanda Shires, estão discutindo a respeito de qual a preposição correta para a letra de uma música que ele está compondo, a fim de transmitir adequadamente a imagem que o autor pretendia. Contrariado, ele aceita a sugestão, e diz:

“Se eu estivesse fazendo música para as pessoas dançarem, não estaria aqui perdendo meu tempo com preposições. Mas as pessoas não estão dançando, portanto, é preciso colocar a preposição correta.”

Em seu novo disco (lançado em junho de 2023), Weathervanes, percebemos como essa “carpintaria” do texto resulta em canções capazes de transmitir não apenas uma variedade de emoções (If you insist: “my momma spent every day alone, in a house with noise and names, she got so tired of putting out fires, she just laid down in the flames”), mas também certa vivacidade na descrição das lutas cotidianas das pessoas comuns.

A eficácia das canções também se deve à competente banda que o acompanha há anos, a 400 Unit: a canção Death Wish, que abre o disco, inicia com o refrão, que se repete mais 3 vezes ao longo da execução – e, em cada repetição, a adição de novos instrumentos aumenta a tensão, realçando a sensação de angústia proposta pelas letras (a respeito de se sentir incapaz de ajudar alguém enredado nas armadilhas do vício, e que pode estar a um passo longe de qualquer ajuda possível).

Há ecos, aqui e ali, de Ryan Adams, Van Morrison, Tom Petty e Bruce Springsteen. Em Weathervanes, Isbell também canta sobre paternidade (Save the world: “school’s starting next week, a lady says ‘you have a lovely child’, I’m too terrified to speak, can we keep her at home instead, can we teach her how to fight?”), sobre personagens sem emprego e viciados em medicamentos, luto, racismo.

Entretanto, se há um tema geral – e que está em todo o trabalho de Isbell desde seu disco solo, Southeastern – é a necessidade de se chegar a um termo com o passado: entendê-lo, acomodá-lo, integrá-lo a um presente (ainda que insatisfatório). Somos responsáveis por muitas de nossas decisões e devemos lidar com as consequencias, mas também devemos lutar para escolher a melhor postura diante de acontecimentos dos quais não temos nenhum controle.

Depois do Sol

O que permanece, para os que ficam, depois que o sol se apaga? Ou depois que a música termina? Quando cerram-se as cortinas?

Às vezes, as lembranças podem ser como fotografias partidas ao meio e repartidas entre 2 pessoas; sozinhos, os pedaços ficam órfãos de significados: parecem acentuar um aspecto incompreensível acerca do presente.

É preciso então que a memória se esforce para esquadrinhar aquelas lembranças isoladas, a fim de que ganhem um novo sentido – inseridas num contexto maior, numa trajetória pessoal. Qual foi a importância daquele momento específico, daquelas férias com o pai, na história de Sophie? De que modo aquele verão explica quem ela é, no presente?

Não se trata de culpa, de achar que havia algo que deveria ter sido percebido para que o presente pudesse ser remediado.

Aftersun, filme dirigido por Charlotte Wells, mostra o poder da memória em restaurar significado: não elucida o mistério, mas permite seguir em frente.

Jornada pela Selva

True Detective (HBO) funciona como uma narrativa memorialista: é uma tentativa de
enquadrar a memória para contar uma história pessoal satisfatória. Além de evocar o passado, o ato de narrar permite reconstruí-lo- à luz do presente.

Mas, e se nossa identidade é fraturada por uma doença degenerativa, que lentamente desfaz todas as memórias e embaralha significados, lembranças e percepções?

A 3ª temporada nos mostra essa batalha, nos leva nessa jornada solitária pela selva da memória – cujo resgate, diante da doença, só pode ser impulsionado por laços familiares que perduram.

Vidas Passadas

A trama de Past Lives, filme sul-coreano dirigido por Celine Song, é (enganosamente) simples: Nora e Hae Sung são amigos de escola em Seul, mas a amizade é interrompida quando a família dela se muda para o Canadá. Doze anos depois, Nora descobre que Hae Sung está procurando por ela nas redes sociais; eles se reconectam por um tempo curto e se afastam (a pedido dela). Mais 12 anos se passam, agora Nora está casada e morando em Nova York, e Hae Sung propõe que se encontrem durante sua visita à cidade.


Nossas recordações ocorrem sob as sombras de quem somos no presente. Personalidade e expectativas – crenças, ideias, planos, objetivos – influenciam seletivamente aquilo que recordamos, e a perspectiva que temos no presente é capaz de enviesar a forma como enxergamos o passado. Buscamos estabelecer uma identidade coerente através do tempo e nossas memórias servem à sua elaboração, realçando tanto percepções de consistência pessoal ao longo dos anos quanto evidências do passado que indiquem uma estabilidade constante a respeito de nossa história. Por essa razão, quando contamos a nossa história – a nós mesmos ou aos outros – pensamos somente em tudo aquilo que fizemos, ou concretizamos, ou escolhemos, e deixamos de lado o que desperdiçamos, o que descartamos, o que não escolhemos.


E se formos incapazes de encontrar um sentido para determinados eventos que ocorreram conosco? Revisitamos o passado e vasculhamos e interrogamos as memórias em busca de uma explicação, e nos deparamos com o fato de que a nossa trajetória também se compõe de nossas perdas e de nossos desperdícios, de nossas omissões, de nossos desejos irrealizados, do que não escolhemos, das possibilidades que não chegaram a se concretizar. É nesse descompasso entre o que somos e o que não fomos que germina a nostalgia.


No seu romance A ignorância, o narrador de Milan Kundera nos diz que a nostalgia é o sofrimento causado pelo desejo irrealizado (e irrealizável) de retornar – ao país, no caso dos exilados, à infância, ao passado. Ele prossegue:

“em espanhol, añoranza vem do verbo añorar (ter nostalgia), que vem do catalão enyorar, este, da palavra latina ignorare (ignorar). À luz dessa etimologia, a nostalgia surge como o sofrimento da ignorância.”

A nostalgia é o sofrimento causado pela ignorância: pela impossibilidade de retornar, sofremos por ignorância: não temos como saber o que poderia ter sido ou o que poderia ter acontecido conosco se tivéssemos escolhido outro caminho, se, das inúmeras possibilidades tivéssemos optado por uma outra diferente desta, que escolhemos.


Past Lives é a narrativa de conversão da nostalgia em memória: seus protagonistas estão reconciliando seus passados: quem eles foram e quem eles são. Suas vidas transcorrem em algum ponto entre providência e livre-arbítrio: não importa se acreditamos que tudo acontece por acaso ou se há uma razão ordenadora dos eventos; o corolário de ambas as crenças é a inevitabilidade do momento presente. Acaso ou destino culminam neste exato instante do tempo em que Nora e Hae Sung se encontram.

Reconhecer todas as possibilidades, tudo aquilo que poderia ter sido, que havia múltiplos outros caminhos que poderiam ter sido trilhados mas não o fizemos, não deve implicar necessariamente nostalgia, lamento, uma angústia tormentosa de nos questionarmos se escolhemos certo, se fizemos certo, se decidimos bem. Implica reconhecer nossa trajetória, lembrar das experiências, dos instantes, das escolhas e dos eventos que nos conduziram até o ponto em que estamos, de nossos erros e acertos, e seguir em frente – carregando a bagagem que nos define, que é constituída pelo que nos aconteceu e não aconteceu, por tudo o que escolhemos e pelas infinitas possibilidades que ficaram para trás.