Miami Vice e a vastidão dos espelhos

Em 1984, estreava na rede NBC norte-americana a série Miami Vice, criada por Anthony Yerkovich e pelo cineasta Michael Mann. Por trás do figurino exuberante dos personagens, da trilha sonora pop-rock, das locações exóticas, da Miami ensolarada, da fotografia de contrastes e de certo exagero típico da década de 80, havia uma série que lidava com o lado sombrio do sonho americano. Considerada por muitos um show “neo-noir”, na verdade o seriado atualizava temas do cinema noir (faltam-lhe características essenciais do “neo-noir” para que seja classificada como tal, o que não é o tema deste texto).

Miami Vice 1984

Raymond Borde e Étienne Chaumeton (Towards a definition of film noir, 1955) destacam que “os filmes do ciclo noir (1939-1950) ocasionam um estado de tensão no espectador, pois todos os seus pontos de referência psicológica são removidos”: vemos personagens falhos e ambíguos, detetives que caminham entre a luz e a escuridão; ninguém é confiável; tudo é cinzento e incerto. As histórias transcorrem sob uma atmosfera de pesadelo, embora filmadas com tomadas realistas (na maioria das vezes). Os protagonistas dos filmes noir se encontram alienados de qualquer ordem social ou moral, tornam-se solitariamente auto-dependentes, e perseguem, a todo custo – como ato de redenção – uma espécie de autenticidade, a partir do que a realidade (fluida e opaca) pode lhes oferecer. Sucesso de público, o show se estendeu por 5 temporadas, até 1989.

Eis que, em 2006, Michael Mann, refinado cineasta de primeiro calibre, mentor criativo da série, lançou nos cinemas um filme dirigido e escrito por ele, batizado de Miami Vice, com Colin Farrell e Jamie Foxx personificando os detetives Sonny Crockett e Ricardo Tubbs.

Miami Vice 2006

Poucas pessoas perceberam que a semente do filme estava num episódio da primeira temporada do seriado, chamado “Smuggler´s blues”.

Há um diálogo esclarecedor logo nos primeiros episódios da série de 1984, em que a personagem Gina pergunta à Sonny: “você se esquece de quem você é?”, ao que ele responde, “meu bem, às vezes eu me lembro de quem eu sou”. E as primeiras palavras que aparecem no roteiro original do filme de 2006 são estas:

“FADE IN: EXT. OCEAN – CLOSE UP: WATER – MORNING LIGHT
We are at the delicate interface between ocean and air…liquid and gas…the event horizon where molecules evaporate. This interchange is ethereal.”
(“Estamos na delicada interface entre oceano e ar … líquido e gás … o horizonte de eventos em que as moléculas evaporam. Esse intercâmbio é etéreo.”)

Michael Mann

Michael Mann

 

No filme Miami Vice (como na série, e em quase todos os filmes de Michael Mann), os temas estão vinculados ao subtexto das identidades artificiais, intercambiáveis, imateriais, sustentáveis provisoriamente somente pelo sacrifício da realidade. Qual o preço a ser pago?

 

 

 

 

 

1) Batalha constante contra um mundo de vícios, sem virtudes: a cada vez que o detetive recebe missão para trabalhar disfarçado, para se infiltrar em alguma organização criminosa, há a possibilidade (renovada) de que ele possa permanecer naquele mundo sombrio; é necessário que o “heroísmo apadrinhe vícios postiços” (T.S.Eliot); com a resolução do dilema, ao final, a decisão de abraçar a lei é reafirmada. Entretanto, o detetive sabe que deverá lidar com as mesmas tentações (em outra oportunidade, ou em outra missão), das quais não consegue antever se sairá ileso novamente. Não por acaso, logo no começo do filme, um dos policiais infiltrados é filmado pelos colegas levando sua “atuação” como criminoso às últimas consequências…A música de abertura de Miami Vice (2006) é Numb, dos Linkin Park, que significa “entorpecimento“. Ao sondar o abismo por muito tempo, a possibilidade de despencar nele, entorpecido, é grande.

club scene

2) Conflito entre realidade e simulação: os personagens de Michael Mann são definidos (e se expressam) pelo trabalho que fazem; viver a vida sob disfarce, para se infiltrar e passar despercebido, requer a criação de um mundo fictício que seja capaz de reproduzir a realidade, mas que se torna, ao longo do tempo, indistinguível dessa realidade. Os limites entre real e ficção são intercambiáveis, pois durante o dia o detetive se torna criminoso, lida com indivíduos da pior espécie, e à noite ele volta para casa. A simulação da realidade funciona como escudo, como proteção – o detetive disfarçado não pode ser descoberto, pois isso significa o seu fim. Portanto, o disfarce também é um modo de colocar a morte sob jugo, de escapar da contingência pelo planejamento detalhado (casualidades não podem acontecer) e por meio do controle de toda tecnologia – por essa razão, os personagens de Michael Mann são tão fascinados por ela (muitos aparatos se tornam extensões de seus disfarces). Todos os passos precisam ser específicos, detalhados, antecipados, a fim de assegurar que o inimigo não descubra quem ele é. Seu disfarce precisa ser autêntico. Tais requisitos possibilitam que sua vida disfarçada seja mais flexível a adaptações, quando imprevistos acontecerem. O corolário é que a verdadeira autenticidade, para o detetive, que é dominar cada pequeno detalhe de seu trabalho, cada informação falsificada, apesar de engendrar uma aparente vida autêntica, na verdade o aliena, o distancia cada vez mais da realidade.

Michael Mann nos apresenta intrusões de realidade nos contrapontos entre planos distintos: no primeiro plano, a imagem nítida e, ao fundo, tudo está desfocado, indiferente, distante. O real somente ganha contornos de nitidez quando o personagem o reconhece, ali presente, e descola o foco de si mesmo. As abstrações visuais da câmera de Michael Mann nos apresentam esse mundo inapreensível, fugidio, submerso pela vida (ilusória) que levamos.

backdraft

backdraft2

3) A melancolia a partir das experiências dos “não-lugares”: o antropólogo Marc Augé (Não lugares – introdução a uma antropologia da supermodernindade, 2016) define os “não-lugares” como espaços sem identidades, prometidos à individualidade solitária, à passagem, ao provisório; são espaços nos quais não há experiência de relação com o mundo real. São constituídos por paisagens das quais o protagonista tem somente visões parciais, pequenos e transitórios vislumbres de uma realidade que está fora de seu alcance. Os “não-lugares” propiciam certa experiência particular de solidão – a experiência daquele que, “diante de uma paisagem que é obrigado a contemplar e que não pode contemplar integralmente, tira da consciência dessa atitude um prazer raro e, às vezes, melancólico. Trata-se de evocação profética de espaço, onde nem a identidade, nem a relação, nem a história fazem sentido, onde a solidão é sentida como esvaziamento da individualidade, onde só o movimento das imagens deixa entrever, por instantes, a hipótese de um passado e a possibilidade de um futuro.” A experiência dos “não-lugares” aparece em vários outros filmes de Michael Mann – ver abaixo (Inimigos Públicos, BlackHat, etc.), e é realçada pelo uso de câmera digital.

 

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Miami Vice, 2006

 

 

Inimigos Públicos, 2009

BlackHat, 2015

4) Papel redentor da mulher: a personagem feminina funciona como rota de escape para o protagonista alienado; ela surge como possibilidade de transcendência, uma eventual reintegração da identidade do protagonista, em um outro lugar, em um outro ambiente, com valores morais estáveis; entretanto, isso nunca se consuma: o protagonista raramente se mostra capaz de se vincular ao possível mundo de segurança oferecido por ela. Nesse sentido, ela é mais um ideal do que uma realidade alcançável.

boating2

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isabella

5) Vastidão dos espelhos: os problemas se intensificam quando o detetive encontra dificuldades para distinguir o real da simulação do real:

Miami Vice doubt

O mundo real se torna (ainda mais) obscurecido, pois sobre ele recaem os inúmeros reflexos lançados pelas simulações. Quando as máscaras caem, e o disfarce é finalmente revelado, a melancolia do personagem decorre de sua percepção de que a realidade, esse pano de fundo vasto e indiferente, é sempre implacável, e não se pode controlá-la, domá-la ou dobrá-la, como se num sonho, e nem se escapa às contingências (“time is luck”).

Isabella: Once I had a fortune, it said: “Live now. Life is short. Time is luck.
Det. James ‘Sonny’ Crockett: You got assets somewhere? Insurance?
Isabella: Why?
Det. James ‘Sonny’ Crockett: Things go wrong. The odds catch up. Probability is like gravity: you cannot negotiate with gravity. One day. . .one day you should just cash out, you know? Just cash out and get out.
Isabella: Yeah?
Det. James ‘Sonny’ Crockett: Yeah. As far and as fast as you can.
Isabella: Would you find me?
Det. James ‘Sonny’ Crockett: Yes, I would.”

Crockett-and-Isabella-2006

ending

O detetive percebe que “enrijeceu seu corpo numa casa de aluguel” (de novo, T.S.Eliot). É necessário, de algum modo, reencontrar seu lugar nesta realidade desconhecida. Onde encontrar a luz novamente?

ending

 

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